Comissões de heteroidentificação e a política de cotas na USP

Por Ana Lúcia Duarte Lanna, pró-reitora de Inclusão e Pertencimento, e Aluísio Augusto Cotrim Segurado, pró-reitor de Graduação ao Jornal da USP

Aadoção de políticas de cotas na USP em 2017 insere-se num grande movimento da Universidade para incorporar as diferenças socioeconômicas, alterando o perfil de seus discentes. Assim definiu-se que 50% das vagas da universidade seriam destinadas a alunos ingressantes de escolas públicas, vindos de todo o país. E, desse percentual, haveria uma subcota, 37% dos 50%, destinada a candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI). Esse percentual equivale à porcentagem de PPI encontrada no censo demográfico do Estado de São Paulo.

 

As mudanças decorrentes dessa política são evidentes. A USP tem, hoje, dentre seus 60 mil estudantes de graduação, 45,1% que cursaram o ensino médio exclusivamente em escolas públicas, sendo 23,2% autodeclarados pretos, pardos e indígenas.

Entre 2018 e 2022, a USP implementou cotas étnico-raciais, aceitando exclusivamente as autodeclarações dos candidatos. O processo se mostrou inadequado, gerando insegurança entre os estudantes. Foram centenas de denúncias contra discentes, que incidiram em qualquer momento de seu curso, resultando em processos que, por vezes, levaram a desligamento em anos finais da graduação.

Em decorrência da insegurança permanente e dos transtornos causados aos estudantes, e buscando impedir as fraudes às políticas afirmativas, a USP adotou, em 2023, as comissões de heteroidentificação. São grupos de pessoas (professores, alunos, servidores tecnico-administrativos e membros da sociedade civil) que passam por processo de letramento racial e avaliam os traços fenotípicos dos candidatos que se autodeclaram negros. Esses critérios buscam recuperar as características físicas que, na sociedade brasileira, estão direta e explicitamente associadas ao preconceito racial. São esses traços, culturalmente impregnados e vinculados à experiência multissecular do racismo no Brasil, que têm sido observados e associados à autodeclaração dos candidatos.

A partir dessas definições a USP, como diversas outras universidades e instituições do Brasil, têm selecionado os candidatos que buscam o ingresso na universidade a partir das cotas étnico-raciais.

Neste ano de 2024, até o momento, 1606 candidatos foram analisados nas fases da heteroidentificação, que compreendem, inicialmente, duas avaliações de fotos por bancas independentes e, quando necessário, uma oitiva presencial ou virtual, uma comissão recursal e pelo Conselho de Inclusão e Pertencimento. No processo avaliativo são envolvidas aproximadamente 70 pessoas, respeitando, nessas comissões, a diversidade étnico-racial e de gênero.

Entre os 1606 que passaram pela heteroidentificação, 1387 foram aprovados (86%); 187 foram considerados não aderentes à política afirmativa (12%) e 32 não compareceram às oitivas (2%).

Para o ano de 2024, com o processo ainda em andamento, já são pelo menos 1.489  ingressantes autodeclarados pretos e pardos, todos oriundos de escolas públicas, incluindo 102 classificados para ocupar vagas de ampla concorrência, permitindo que outros candidatos PPI fossem chamados para as vagas reservadas para cotas étnico-raciais.

É importante destacar que para cada candidato considerado não aderente à política afirmativa, um novo candidato PPI é convocado para o processo de heteroidentificação. Assim, por exemplo, no curso de Medicina em São Paulo já estão matriculados 37 novos alunos pretos e pardos, embora o processo ainda não tenha sido finalizado. Ao final dele serão 46 ingressantes PPI.

Necessário também destacar que o processo de heteroidentificação integra uma política pública em permanente avaliação. Ajustes e aperfeiçoamentos serão debatidos e implementados a partir da experiência acumulada e aprovação dos órgãos colegiados da USP.

Estamos convencidos que as comissões de heteroidentificação e as políticas afirmativas, lados de uma mesma moeda, têm garantido o processo de inclusão social e de construção de uma universidade pública mais diversa e socialmente plural, mantendo seu nível de excelência, recentemente reconhecido em rankings acadêmicos internacionais em posições de destaque nunca antes alcançadas.

Artigo publicado no Jornal da USP, em 05/03/2024

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