Uma reflexão sobre a diversidade no campo científico

Por Márcia Lima, assessora da PRIP (Pró-reitoria de Inclusão e Pertencimento), coordenadora do Núcleo Afro-Cebrap e professora do Departamento de Sociologia da USP.

Na semana que celebra o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, 25 de julho, é oportuno levantar uma questão que, embora apresente avanços inegáveis, ainda precisa ser amplamente debatida: a promoção da diversidade no país.

Temos de enfrentar ao menos dois desafios.

O primeiro diz respeito a quem nos referimos quando falamos de diversidade. Esse termo começou a receber destaque em ambientes institucionais nos anos 1990, quando eram crescentes as pressões da sociedade civil organizada para o enfrentamento das disparidades raciais e de gênero no mercado de trabalho. À medida que o debate se ampliava, foi necessário especificar que tipo de diversidade se demandava — étnica, racial, de gênero —, ou então empregar o termo no plural: diversidades.

O que isso significa? Que, mesmo quando adotamos o termo, não somos capazes de abarcar todas os grupos historicamente excluídos. A implementação de políticas de diversidade não dava conta, justamente, da diversidade da diversidade. No início do debate, no que concerne ao mercado de trabalho, a maioria das empresas focava em contratar mulheres. Mas não todas as mulheres. As negras não eram incluídas.

Kimberl Crenshaw, intelectual negra que cunhou o termo interseccionalidade, tem um texto (chamado justamente “A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero”) que ilustra bem esse ponto. Em 1976, cinco mulheres moveram um processo contra a General Motors, nos Estados Unidos, acusando-a de discriminar mulheres afro-americanas, ao recusar-se a contratá-las De acordo com a autora:

“O problema é que o tribunal não tinha como compreender que se tratava de um processo misto de discriminação racial. O tribunal insistiu para que as mulheres provassem, primeiramente, que estavam sofrendo discriminação racial e, depois, que estavam sofrendo discriminação de gênero. Isso gerou um problema óbvio. Inicialmente, o tribunal perguntou: ‘Houve discriminação racial?’ Resposta: ‘Bem, não. Não houve discriminação racial porque a General Motors contratou negros, homens negros’. A segunda pergunta foi: ‘Houve discriminação de gênero?’ Resposta: ‘Não, não houve discriminação de gênero’. A empresa havia contratado mulheres que, por acaso, eram brancas”. (Crenshaw: 2002, 14-15).

Esse exemplo retrata bem os desafios e implicações da construção da diversidade no que diz respeito à interseccionalidade. Vale perguntar como definimos diversidade e o que almejamos com ela. Ainda que o exemplo de Crenshaw se concentre numa situação de mercado de trabalho, ele nos permite inferir a discriminação mista para outras áreas, como o campo científico. Sabemos das tradicionais clivagens de gênero nas carreiras universitárias e do baixo acesso de negros em muitas delas. Estamos atentos a esse processo?

Isto posto, devemos enfrentar um segundo desafio que o debate sobre a diversidade nos põe. Trata-se de cobrar a maior ou menor adesão a essa agenda, levando em conta os diferentes setores de atividade, bem como as distintas áreas de conhecimento. Como nos lembra o sociólogo Pierre Bourdieu, todo campo é marcado por relações de força, por disputas de reconhecimento e legitimidade que geram acúmulo de recursos e poder. Nesse sentido, pensar diversidade na ciência é introduzir dimensões como raça e gênero nessas relações de força e, portanto, na construção do próprio campo.

Esse ano de 2022, em que se comemoram vinte anos de ações afirmativas no país e dez anos da lei 12.711, conhecida como a Lei de Cotas, é um momento propício para avaliar como o campo científico no Brasil tem enfrentado essa agenda. A pesquisa de Anna Venturini sobre ações afirmativas nos programas de pós-graduação mostra que os programas com nota máxima da Capes (nota 7) são os que apresentam menor proporção de adesão a essas políticas, embora a cifra não seja inexpressiva (39,3%), enquanto as ciências humanas abarcam o maior número de programas com ações afirmativas (75,8%). Ciências agrárias e ciências da saúde apresentam menor adesão, 43% e 43,8%, respectivamente.

Historicamente, o campo das ciências humanas sempre foi mais aberto ao debate sobre inclusão, o que não significa que não tenha havido conflitos. Como suas pesquisas muitas vezes contemplam temas correlatos à questão da diversidade, a discussão sobre políticas de inclusão fica mais em evidência. Mas as ações afirmativas estão presentes em todas as áreas de conhecimento e sua implementação não dever ser diferenciada, sobretudo na pós-graduação. É urgente ampliar a agenda e as formas de inclusão nesses campos científicos que ainda privilegiam a meritocracia. Não há meritocracia quando há processos desiguais de formação.

Pensar uma lei federal ou estadual para ações afirmativas na pós-graduação certamente será em vão, dada a particularidade das áreas e estratégias do processo seletivo. No entanto, acredito ser possível impulsionar a diversidade na ciência por meio de políticas públicas e privadas. Editais de apoio à pesquisa oferecendo mais recursos às equipe com maior diversidade, reserva de bolsas para estudantes e pesquisadores de grupos menos privilegiados, inclusão do critério de diversidade na avaliação dos programas são algumas das possibilidades de construir um campo mais diverso.

Publicado originalmente no Nexo Jornal, no dia 27 de Julho de 2022, acesse pelo link: Uma reflexão sobre a diversidade no campo científico – Nexo Jornal.

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